Com o fim da era do 'dinheiro fácil', startups apertam as contas

Alta de juros deixa investidores mais seletivos e força a reorganização de negócios inovadores, inclusive com demissões

SÃO PAULO - A recente onda hype das start-ups refluiu com o novo cenário econômico. Em plena pandemia, com juros em mínimas históricas no mundo todo, dinheiro não faltava para essas empresas inovadoras ainda no seu nascedouro. Suas soluções tecnológicas, fossem inovações disruptivas ou mera digitalização de velhos processos, eram disputadas pelo capital que aceita mais riscos em busca de retornos mais polpudos. Não mais. Em meio à escalada dos juros em alta, aqui e nos Estados Unidos, e renda em baixa, carcomida pela inflação, investidores ainda mostram disposição em correr o risco envolvido nesses negócios promissores. Mas, ninguém espera mais ver gestores de fundos de venture capital, como são chamados os voltados para capital de risco, aceitando pagar por um bom naco dessas start-ups preços que as avaliem em dezenas de vezes o caixa que a operação delas gera, como acontecia até outro dia. Tampouco vão tolerar que elas queimem caixa para crescer rápido e a qualquer custo, prática comum nos últimos dois anos, sobretudo entre os negócios voltados diretamente para o consumidor, no qual ganho de escala e dominância do segmento de atuação eram o nome do jogo. Para o CEO do Mercado Bitcoin, Reinaldo Rabelo, além de os fundos de venture capital já não captarem como antes, o cenário econômico nebuloso e a aproximação das eleições no Brasil eliminam a chance de saída pela Bolsa. Uma oferta pública inicial de ações precoce para financiar o crescimento, como também chegou a acontecer nesses tempos de abundância, não encontra condições favoráveis no momento. Resta aos líderes de start-ups atuarem na linha de gastos. — Quem pode vai esticar o prazo até a próxima rodada de captação — afirma Rabelo, cuja start-up virou um unicórnio (como são chamadas as avaliadas acima de R$ 1 bilhão por investidores) em 2021.Especialistas que acompanham essa área esperam ainda ver essas rodadas de investimentos acontecendo, algumas até bem robustas, mas com intervalos mais dilatados entre uma e outra. Demanda desacelera: alguns unicórnios já dão sinais dessa nova etapa. Em meados de abril, Loft e Quinto Andar, duas concorrentes no segmento imobiliário, protagonizaram a primeira rodada de demissões vista entre as start-ups no Brasil pelo menos em uma década.Até o início deste ano, o que se via era o oposto. Faltava mão de obra para saciar o apetite do mercado. Profissionais de tecnologia permanecem demandados, e foi por isso que a Loft remanejou 52 deles para outras áreas. Mas, no mesmo dia, demitiu 159 pessoas. O número equivale a um quarto de sua operação de crédito, na qual a justaposição de empresas adquiridas gerou duplicidade de funções e deflagrou os cortes.Na mesma época, a Quinto Andar mandou embora praticamente o mesmo número de pessoas que a rival. Seu quadro, porém, é duas vezes o da Loft. — Não é uma questão estrutural específica da Quinto Andar, foi mais um ajuste de percurso, de velocidade, de redirecionamento, em vista do que a gente está vendo no cenário — diz Gabriel Braga, CEO e um dos fundadores da empresa. Enquanto o capital era abundante, parar para estabelecer prioridades era perda de um tempo precioso. A tônica era outra nessas empresas.— Já que a gente está indo bem, vamos captar e acelerar os nossos planos, abrir outras frentes, trazer mais gente. Acho que a gente fez isso consciente e bem no ano passado — avalia Braga. Saneamento em alta Paulo Humberg, fundador da Keycash e considerado um dos pioneiros da internet no país, com participação na criação de marcas como iBest, Shoptime e Lokau, concorda com Braga: — Na fotografia daquela situação, era o certo. Em tecnologia é importante você ser o desbravador líder.Segundo Renato Ramalho, CEO da KPTL, gestora de venture capital com mais de 60 empresas no portfólio, agora ganham peso as inovações autênticas, em detrimento de digitalização pura e simples ou do crescimento desenfreado: — Permanecem atraentes aquelas em que não necessariamente se precisa de muito dinheiro para a publicidade. Setores em que a disrupção está acontecendo agora, como saneamento, cita Ramalho, seguem território fértil para start-ups florescerem.— A lição aprendida é que a abundância pode não ser tão boa em alguns casos. A escassez faz com que, de alguma forma, o mercado se atualize — afirma Leo Monte, head do hub de inovação Torq, com mais de 70 start-ups sob seu guarda-chuva e mais de 500 em vista. — Acho que existia uma exuberância que está sendo corrigida. Isso é benéfico — diz Guilherme Hug, sócio-fundador da Fuse Capital. Corte na facily: o caso mais emblemático da revisão de prioridades é o do aplicativo de compras coletivas e distribuição Facily. No fim de 2021, a start-up recebeu US$ 385 milhões, mas sem carta branca para gastar. Escaldada após despontar entre as que mais geraram queixas junto ao Procon por falhas na entrega dos itens adquiridos, a empresa não revela números. Fontes do mercado dão conta de que a start-up demitiu 40% de sua força de trabalho, de pouco menos de mil pessoas. Os problemas já eram conhecidos dos investidores quando injetaram mais capital no negócio. Mas, dessa vez, o dinheiro foi aplicado na compra de uma frota para a entrega dos itens adquiridos de diversas origens nos pontos de retirada próximos ao cliente, não em gastos correntes.